Distinta Recordação

Era o meu último dia no hotel, minha última viagem a negócios naquele ano. Acordei cedo, pensando somente em arrumar minhas coisas e ir embora tão logo estivesse pronto, mas o sol forte me encorajou a, após o café, passar um instante na piscina.

O calor ao ar livre era imenso, mas quase desisti da piscina quando constatei que sua água estava mais gelada do que eu esperava. Cheguei a devolver a toalha que já tinha apanhado em seu quiosque, mas logo voltei e mergulhei sem dar uma nova chance ao meu receio.

Não me acostumei à água, como esperava, mas permaneci ali até que meus dedos começassem a se enrugar, utilizando isso como desculpa para finalmente poder sair da piscina sem parecer um covarde a mim mesmo. Sentindo o ânimo recobrado pelo sol forte, decidi me estirar na espreguiçadeira mais próxima por um instante.

No chão ao meu lado, uma menina de não mais de dois anos brincava entre eu e sua mãe, uma mulher de cabelos curtos e dourados que, displicentemente coberta por um robe branco do hotel, reparava em minha chegada. Uma enxurrada de lembranças enegrecidas pelo tempo me tomou, quando vi o azul impossível de seus olhos. Fui, então, atirado a um passado que se perdia sob quase três décadas de minha vida, a milhares de quilômetros daquele hotel.

O formato de seu rosto, os olhos minimamente repuxados, os lábios finos que se abriam para mostrar dentes levemente irregulares. Foi com assombro que em milésimos de segundo percorri e reconheci uma infinidade de características que eu ainda podia enumerar depois de tanto tempo, mas eram os olhos, definitivamente, que não deixavam restar qualquer dúvida.

As primeiras lembranças de nossa amizade pareciam subir por minha garganta, congestionando minha respiração. Um misto de surpresa e choque se revirava em mim, me deixando sem reação. Senti que desataria a chorar antes de dizer qualquer coisa, e nenhuma palavra pertinente me ocorria.

Minhas lembranças me chegaram desencontradas, e a princípio parecia difícil compreender quais delas se referiam à minha adolescência ou infância. Não conseguia organizar aquelas imagens em uma linha cronológica, mas no instante seguinte tudo me surgiu como um filme velho e esquecido que, depois de algumas tentativas, nos preenche a lembrança com uma infinidade de detalhes fantásticos. Eu nem mesmo fazia ideia de que tudo aquilo ainda podia estar guardado dentro de mim.

Assim, me lembrei das primeiras vezes que nos vimos na pré-escola, sentados lado a lado, e de como nos tornamos amigos com imensa facilidade; de sua primeira festa de aniversário, onde nós e as outras crianças da classe nos reunimos fora da escola pela primeira vez; da fascinação que me tomou quando descobri seu vídeo game, e de como eu tentava dissimular tal interesse quando pedia para ir até sua casa; de como seus golpes de judô me humilharam na frente de nossos amigos, quando tentei lhe bater por algum motivo qualquer.

Também me lembrei de como me foi exasperante quando, já no ensino fundamental, fomos postos em salas separadas. Nosso contato, então, diminuíra drasticamente conforme nossos círculos de amizade mudavam e os anos passavam, mas ainda mantínhamos um coleguismo particular, muito diferente daquele que eu ainda mantinha com outros amigos perdidos sob as mesmas circunstâncias.

Outros anos se foram. Já em minha adolescência, alguns colegas do passado reapareceram, me contando sobre como andava sua vida. Uma pequena saudade surgia dentro de mim, porém eu não via qualquer justificativa para lhe procurar. De alguma forma eu acreditava que aquele laço se deterioraria fora de minha memória, portanto seria melhor deixa-lo intacto, mesmo que o tempo o fizesse se perder entre outras tantas lembranças que eu já tinha.

O meu deliberado afastamento de pessoas importantes, como ela, poderia sim ter causado tamanho choque naquele instante, mas logo compreendi que todo aquele embaraço e compreensão iam além do que eu estava preparado a enfrentar. Vendo-a ali, caí em um turbilhão de dúvidas que desfaziam a lógica de anos já tão distantes, e passei a finalmente compreender coisas que eu havia deixado de lado em minha infância.

Sua expressão, agora, não apenas exprimia seu reconhecimento sobre mim, mas também se tornava cada vez mais carregada pelo peso de pensamentos tão complexos quanto os meus. Não havia dúvida.

Tomado por tamanho estupor, permaneci em silêncio, esperando que um pensamento simples finalmente surgisse em minha mente e resumisse toda a imensa carga de considerações que agora pesavam sobre mim. Meu olhar vagou por seu corpo, e absorvi dali cada detalhe: a pele tão lisa, os cílios tão delineados, a boca delicada coberta por um batom claro e reluzente. Mãos de dedos compridos e suaves, alongados por unhas muito bem cuidadas.

Pelo contraste de seu maiô preto, reparei nas poucas curvas visíveis, atento ao quadril e à barriga que, com uma leve saliência, evidenciava uma gravidez que se iniciara recentemente.

Meu pensamento finalmente chegara a algum lugar. Lembrei da estranheza de modos de seus pais, de seu desaparecimento da cidade sem qualquer justificativa, e de muitas outras coisas que até então permaneciam sem explicação para mim. Nossos olhares se encontraram mais uma vez, e pude sentir a certeza que ela queria me transmitir com este gesto.

“É você, Jonas?”, perguntei, sentindo que meu corpo jamais me obedeceria caso não dissesse algo.

Ela permaneceu em silêncio.

Envergonhado por tamanha loucura, sem imaginar o rumo que minhas palavras dariam àquilo, só pensava que o desastre iminente havia chegado. Era impossível que uma mulher, ainda por cima grávida, não se sentisse ofendida por tamanha falta de tato e sensibilidade. Eu agora me via sendo escorraçado do hotel sob uma truculência merecida, mas já era tarde para qualquer reação minha ou pedido de desculpas.

Eu nada poderia fazer antes que ela dissesse dizer algo, resignado ao meu papel final, independente de qual fosse, esperando que o desfecho daquilo pudesse libertar a ambos. Sua filha ainda brincava, e eu me senti aliviado por ela ainda ser tão pequena a ponto de não compreender o que acontecia.

Para a minha surpresa, ela ainda permanecia serena, tentando formular algo a me dizer. Eu ainda tentei me antecipar aos rumos que nossa conversa teria, mas nenhum de nós teve tempo para dizer qualquer coisa além da compreensão que ali se estabelecera.

Só percebi a aproximação de seu marido quando ela se virou rapidamente, simulando uma felicidade tão grande que fez eu me sentir ainda mais deslocado da realidade.

Ela nos apresentou, enquanto lhe contava rapidamente de onde eu vinha. Tendo em vista a fragilidade da situação, deixei que ela tomasse as rédeas da conversa, atento para não desmentir qualquer versão que ela achasse mais adequada ao seu marido. Pesando cada uma de minhas palavras, perguntei brevemente sobre a vida de ambos, deixando o nosso passado para uma conversa vindoura que nunca viria.

Permaneci ali somente o necessário. Simulando alguma pressa, levantei-me para me despedir, apertando a mão do homem. Ela também me estendeu sua mão, e eu, ainda abalado, decidi abraça-la com uma força.

Aquele gesto durou apenas um instante, mas nele tentei lhe dizer que eu não me importava com qualquer explicação. Para mim, importava apenas guardar nossas lembranças, tanto as antigas como as novas, com o maior apreço que me cabia. Ela retribuiu o abraço, dando-me um beijo no rosto que me fez corar, e que fui embora com um sorriso que não imaginava ainda possuir.

Não lhes dei oportunidade para que trocássemos nossos contatos. Não acredito que eu tenha de estar mais próximo do que suas outras tantas memórias de uma vida já deixada para trás.

E eu espero ser uma de suas boas lembranças.

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